sexta-feira, 3 de setembro de 2010

O bom dia de Mirna Moulin

Eu acho mesmo que essa vontade de não dar bom dia passa despercebida quando encaro que o dia não está realmente bom, então quando eu ainda não sei, me pergunto: Por que eu só consigo dar Bom Dia depois de meia hora que acordo? Parece que eu me certifico antes se o dia está bom mesmo. O fato é que pra fazer sentido o dia precisa fazer sentido, não pode ser como hoje, por exemplo, que ainda não tá fazendo muito sentido.

Poderíamos falar um pouco sobre a rotina de Mirna Moulin, um travesti robusto que morava na rua de pedra do centro da cidade. Talvez não fosse apropriado, você pode pensar, mas está aí alguém que dá bom dia a cavalo, literalmente.

Depois de uma noite de trabalho ela volta, por volta das 3h57 para seu quarto, um cômodo apertado nos fundos de um açougue do qual divide o único banheiro, localizado entre o quarto e o estabelecimento. Não muito frequente se dedica a limpeza do lugar para que as moscas não tomem conta por completo do ambiente de filme de terror que é como pode ser classificado o singelo toilet de 2m por 2m. Digo de filme de terror, porque as paredes ficam sujas de sangue a cada vez que os açougueiros passam por lá e digo toilet, porque é como Mirna gosta que o banheiro seja chamado, ela acha mais chique, por isso que providenciou uma placa com motivos desses de banheiro que a gente encontra em posto de estrada. - "Tô í lét", acho chique! Pronunciou feliz quando acabou por fim de pregar na porta aquelas letras cravadas num pedaço de madeira.
3h59, ao passar pelo banheiro se lembrou de como pregou aquela placa e se sentiu rica, afinal os programas tinham rendido mais que duas tapiocas e um suco de cajú que era o seu desejo do dia seguinte na feira livre do bairro. 4h mijou e percebeu que sim, já era hora de limpar o banheiro de novo. Deu boa noite às moscas e saiu desviando delas como quem abre uma cortina. Pensou:
- Amanhã vou comer duas tapiocas e tomar suco de cajú na feira aqui do bairro, pastel engorda.
Dormiu, com um semblante simples, singelo, cansado talvez, sem banho, de maquiagem e salto alto, melada e na companhia de uma mosca que ficou grudada no seu rímel.
10h, seis horas dormidas já estavam suficientemente boas para ela.
- Bom dia luz do sol! Assim ela acordou arrancando o cílio postiço e se dando conta que a mosca estava ali, amedrontada, jurando estar grudada numa teia de aranha.
- Não, não, não bonitinha, que medo bobo. Eu lá tenho cara de aranha?  
A mosca sorriu e respirou aliviada, abrindo um voo redentor após ter sido retirada da armadilha. Não durou muito este momento e até poderíamos pensar num close da mosca com um fundo de música bem inspirador aos sentidos libertários, mas não, a pobre mosca bateu com a cara na veneziana que estava fechada e caiu zonza e morta, estava fraca já, mosca não é uma coisa que vive muito.
10h30 de roupa mais dia, de sapato mais senhora e de maquiagem borrada, porque leite de colônia daquele frasco verde, não retira tudo mesmo, ela saiu. Ela saiu sem banho, mas eu apoio, não dava mesmo pra tomar banho antes de limpar aquele lugar.
10h32, Bom dia! Bom dia! Primeiro aos açougueiros que adoravam vê-la passar, para verem seus peitos, sua pouca bunda e darem risinhos pro Waltão, um gordo forte, tipo urso e de voz grossa, ah e de bigode também, que às vezes currava Mirna num encontro furtivo para usar o banheiro.
Bom Dia! Bom Dia! 10h35, muito bom dia ao casal de namorados sentado na praça, uma cena romântica como ela deveras gostava. Bom D..., engasgou um bom dia as 10h37 para a cigana que falara que ela ia morrer de doença, passou reto. Pensou:
- Não sou obrigada! Eu hein! Bom Dia! Oi seu Breno, tô boa sim e o senhor? Ah então tá bom. Manda um beijo pra sua filha.
A filha do seu Breno era uma sapatão que tinha um buteco, mas que fechou porque não ia muito bem.
10h42 e a feira livre é realmente um lugar pra se ver, ouvir, comer e sentir de tudo. Um espaço democrático, livre como o próprio nome já diz. Muitos aos berros em seus anúncios de melhores ofertas, muitas velhas simpáticas sempre e muitas velhas ranzinzas também. Mirna ali era praticamente uma celebridade, ainda mais depois daquela novela que o ator gritava o nome da personagem bem forte MIRRRRRRRRNNAAA. Era assim que muitas vezes os feirantes a chamavam, ela amava isso.
10h48, Axé baiana! Como tá nossa terra? Me vê duas tapiocas e um suco de cajú. - Não disfarçou o brilho nos olhos e segurou a boca com o punho fechado, numa emoção tão grande que a fez abusar:
- Bote mais baiana! - Se referindo ao leite condensado da tapioca doce, ela queria mais. Comeu, deleitou-se, nada como um pequeno prazer para se sentir grande e assim com as moedas restantes comprou banana, e pediu pro Zé da laranja pendurar a meia dúzia que ela levou.
11h11, fez um pedido. Pediu à São Cosme e Damião, seus santos da infância na Bahia, bons lucros na próxima noite e prometeu ir ao terreiro levar muitos doces na festa do Bigi.
11h13, Bom dia ao chofer de madame, bom dia à madame que virou a cara, bom dia ao policial e... O ENCANTO. Ele estava montado num cavalo marrom de pelos cintilantes, de crina longa e rabo escovado. Mirna percorreu os corpos do belo polícia, do belo cavalo, da bela miragem, ou visão. Do antigo fetiche de ser desejada por um polícia de quem apanha frequentemente, Mirna não reconhece, mas isso deve ser trauma da infância. 11h15, estática. 11h16, o cavalo relincha e ela ri. 11h16, ainda, o polícia pergunta a Mirna se ela quer dar uma voltinha e ri sarcástico, desce do cavalo, amarra-o e se dirige ao outro lado da calçada. A rua movimenta-se. Mirna está estática, alguma coisa aconteceu ali dentro, quem sabe alguns questionamentos, as promessas a São Cosme e Damião, a madame esnobe e o pequeno prazer de comer duas tapiocas e tomar um suco de cajú. Nesse momento a mistura de tudo a faz pensar e o pensamento lhe traz uma angústia, notem, ela ainda nem viu que a mosca é morta em sua janela, mas o cavalo , ali em frente lhe permite explorar o que não é próprio do seu mundo, então às 11h18 ela dá bom dia ao cavalo:
- Bom dia cavalo!
Num ato rápido, histórico, surtado, Mirna monta no cavalo e emite um imenso e forte grito:
- EEEiiiiiaaaaaaaa!! Ri de mim agora!
O cavalo dispara, o policial grita do outro lado da calçada, o trânsito o impede de passar, o cavalo veloz, segue como se Mirna fosse sua dona. Ela altiva e radiante, em pose de amazona:
- Bom Dia! Bom Dia! Bom Dia!
Bom dia até ouvir a buzina de um caminhão. Isso foi às 11h19m40s. 

Se eu pudesse perguntaria ainda se teria sido um bom dia ou se era melhor esperar mais meia hora.



Um comentário:

Haline Arantes disse...

HUAhuHAuUHAuUAHuHAhuHUAhuAHuhu
Os velhos hábitos poucas vezes morrem não é mesmo? E de repente quando a gente decide mudar a rotina sem nem perceber, dá de cara com um cavalo! UAHuHUAuHAuHUAHuHUAhUHAUHAU
Olha meu amô...sem comentários!

de nascer

quem quiser  quem for ver vai dizer que o tempo passou voando não vai mentir vai sentir um vento na cara, natureza talvez sorrir parece que ...