terça-feira, 12 de maio de 2015

Em branco

Sentiu frio, a boca pastosa, cuidou de se agasalhar com a manta de microfibra que tinha ganhado uns dias antes. Ouviu um burburinho vindo da rua, um caminhão a buzinar, uma velha gritando, refletiu sobre como e o porquê elas gritam, sem conclusões. A única conclusão, a qual ele não queria chegar naquela quarta-feira de folga era a de que com aquele friozinho não sairia da cama por nada.
Levantou como quem perde a hora. Pensou ele que teria algum sucesso se talvez fizesse como todos os dias em que seu hábito de levantar por obrigação o catapultava da cama. Mas não, a ignição daquele lançamento da cama para o mundo era de fato o toque estridente daquele despertador que comprou de um chinês que vendia artigos na rua e que, por sinal, teve seus produtos apreendidos pelo “rapa” segundos depois da compra.
Sem alegria aparente, sem café posto na mesa, sem Qualy pra passar no pão entre sorrisos familiares compartilhados, sem suco de laranja fresco e geladinho, pressentiu que não podia lutar contra aquele sono acumulado. Quis pensar no almoço, lembrou-se do único Miojo no armário. Quis ligar pra Silvia, mas ela agora estava namorando aquele professor de educação física que tinha um corpo tão perfeito, uma alimentação tão balanceada, uma vida regrada de exercícios físicos, que era uma humilhação ter que conhecê-lo pessoalmente.
Silvia, uma antiga ex-namorada, hoje amiga e confidente, o tinha como um irmão, o irmão que ela não teve, falava sempre que contava com ele pro que der e vier. É claro que ele nutria, no fundo, algo por ela, mas os anos fizeram aquilo se transformar na amizade perfeita entre homem e mulher que Silvia jurava manter com ele. Ao contrário do que ela imaginava, ele odiava saber que o professor de educação física era foda na cama e que o pau dele era grande e grosso. “Por que ela insiste em tocar nesse assunto?” Se perguntava sempre que desligava o telefone já com as orelhas quentes das horas e horas em que ela fazia uso dos seus bônus de Tim pra Tim ligando pra ele. “É de graça, vamos falar!” Ela comemorava, enquanto ele amaldiçoava a empresa de telefonia móvel.
A essa altura ele já havia se embrulhado na manta novamente e parecia ter se acostumado com o grito da velha que agora se fazia audível: “Vou te matar picado Antero!” “Que diabos esse Antero fez pra ela estar esbravejando assim?” Imaginava já achando graça e até com curiosidade de ir espiar a cena na janela. Mas sair debaixo daquela manta quentinha? Não mesmo. Pensou nos motivos que eventualmente o fariam sair da cama: morte em família; dor de barriga; incêndio. Eram motivos remotos. Ou nem tanto, afinal a tia Creontina, aliás, tia-avó, a última e mais velha das irmãs de sua avó, estava morre-não-morre no hospital havia alguns dias. "Seria muito desumano não estar se importando tanto com isso?" Sentiu certo desconforto por conta desse pensamento, que o fez revirar-se na cama. Nunca se esqueceu do tapa que ela deu na mão dele porque ele tocou na roseira dela. É bem verdade que ele já tinha arrancado uma ou duas rosas, uma ou duas vezes, mas criança tem dessas travessuras. Não fosse ele ter aberto o berreiro quando espetou o dedo num espinho da roseira, a tia Creontina nunca teria desfeito o enigma do desaparecimento das rosas da roseira do jardim do alpendre. Somem Safira! A avó dele chamava-se assim, que nem pedra preciosa. Somem, menina! Ninguém até então desconfiava dele, criança tranquila sempre está acima de qualquer suspeita. Sempre se utilizou dessa boa fama para sair ileso de qualquer presepada que aprontava. Quando menino tentava entender, porque tem rosa que é rosa, rosa que é vermelha e rosa que é branca. A rosa que é branca, ficou em branco por falta de tinta ou de memória. Pensamento de criança é tão legal. Estava quase cochilando entre uma lembrança de infância e outra, quando o telefone tocou.
- Morreu filho!
- Quem mãe?
- Sua tia Creontina, a última. Agora não sobrou mais ninguém.
- Que pena mãe.
- Você vem?
Tossiu compulsivo, estava tentando achar uma desculpa.
- Tô com uma tosse mãe!
- Era sua tia, filho.
- Putz! Bem no dia da minha folga? Era só tia-avó mãe.
- Irmã da minha mãe. Tive lá segunda e ela estava tão bonitinha. Toma um Melagrião e vem.

 “Decerto vai plantar uma roseira no céu agora”. Pensou alto após desligar o telefone. Ele tinha esses rompantes de sinceridade, quando não desligava fazendo micagem ou imitando a pessoa do outro lado da linha, ele disparava um pequeno xingamento. A chefe era vaca, a mãe chata, a secretária do dentista que ligava cobrando a raspagem que ele ainda não tinha pago, gorda.
Enfim, levantou-se. Um trauma. Diante daquela vida medíocre, o sono era um prazer absoluto. Dormir: a mais democrática das fugas. Recriminou-se ao pensar que Creontina é que estava com sorte, poderia dormir pra sempre agora. Pegou pesado, balançou a cabeça pra espantar o pensamento. Foi o que de fato o fez levantar.
Levantou, mijou, tomou danone fake de saquinho, cujo rótulo vinha escrito: bebida láctea, Vita-lacte, agite antes de beber. Da cozinha retornou ao banheiro, abriu o chuveiro, pensou em bater uma, mas e a crise hídrica? Indagou-se. Desistiu da bronha, se ensaboou, lavou a cabeça com aquele Niely Gold fedido que não acabava nunca. Se enxugou, escovou os dentes, se vestiu em frente ao espelho de corpo que fica dentro da porta do guarda-roupa. Pensou que não estava tão ruim assim. Apenas alguns exercícios e... voillà! Não ficaria pra trás do bombado da Silvia. Ilusão, claro. Nunca tinha parado pra pensar nas centenas de ilusões que vinha colecionando nos últimos tempos. Um dia ter um corpo, um dia ter um carro melhor, um dia ganhar mais, um dia morar melhor, comer chocolate só mais hoje, dormir só mais cinco minutos, um dia ser saudável, ser disposto, ser o que quiser, concluir o curso de direito, ter o direito de se iludir.
Chamou o elevador. Desceu até a garagem. Abriu o portão. Deu oi pro seu Dimas. Seguiu completamente convicto de estar vivendo de ilusão. Iludido. Culpou o capitalismo. Pensou em fazer terapia. Culpou o socialismo, porque não deu certo. Culpou seu avô, que perdeu tudo que a família tinha no jogo, hoje ele poderia ser um empresário de sucesso, administrador dos negócios da família. Teria orgulho, falaria de boca cheia: Negócios da família. Não se sabia mais. Era mais uma ilusão pensar que pudesse ser assim. Acelerou. Viu dona Safira, a avó, dar de ombros para um padeiro, se viu comendo a Silvia na esquina na frente do bombado, bateu o carro num emaranhado de ramos cheios de espinhos, esfregou os olhos e viu que eram grandes roseiras crescendo sem parar, desceu, bateu a porta, gritou de pânico, chorou uma pétala, na sua frente sua mãe, que levantou seu rosto pelo queixo, comeu a pétala chorada e então, riu desesperada. Ele correu, perdeu a direção, queria voltar pra casa, mas não tinha direito, não sabia o porquê, rezou, mas não teve resposta, não sentiu no coração, não sentiu que ele era ele, não tinha mais nome. Vou te matar picado Antero! Vou te matar picado Antero! Vou te matar picado...

- João! Gritou seu próprio nome embrulhado na manta, ainda na cama.

Do lado de fora a gritaria da velha, lá dentro um reencontro consigo mesmo.




Um comentário:

Unknown disse...

me identifiquei com sua escrita minimalista.
viajei, senti, ri, me ri.
a sequencia de algumas palavras num misto de ironizar a morte, a velhice e suas manias que vem chegando com o tempo.
e o ti picar...é trágicamente delicioso.
bem bonito e poético...
sorte+
beso
rick

de nascer

quem quiser  quem for ver vai dizer que o tempo passou voando não vai mentir vai sentir um vento na cara, natureza talvez sorrir parece que ...